Como a Cozinha de Frankfurt Continua a Habitar as Cozinhas de Hoje

Durante séculos, a cozinha foi tratada como um espaço secundário, muitas vezes escuro, acumulando várias funções: cozinhar, lavar roupa, socializar, tomar banho e até dormir. Ou seja, as cozinhas modernas que conhecemos hoje pouco se parecem com as cozinhas de antigamente. No entanto, existiu um projecto que marcou profundamente o conceito de cozinha moderna: a cozinha de Frankfurt, criada na década de 1920. Esta cozinha é hoje considerada “a mãe das cozinhas embutidas”.

Neste artigo, vamos conhecer a sua história, compreender o contexto em que foi criada, quem foi a sua autora e perceber de que forma a Cozinha de Frankfurt influenciou profundamente o design e a utilização das cozinhas actuais.

Contexto Histórico: Uma Alemanha em Reconstrução

Terminada a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha vivia uma profunda crise económica e social. Havia urgência em reconstruir cidades, reorganizar a vida quotidiana e, acima de tudo, criar habitações acessíveis, maioritariamente para a classe média que havia perdido as suas habitações no decorrer da guerra. As condições económicas da época exigiam que essas novas habitações fossem simples, económicas e eficientes, assim como capazes de proporcionar qualidade de vida.

Frankfurt tornou-se o epicentro de um movimento inovador de urbanismo e habitação social graças ao ambicioso programa liderado pelo arquiteto Ernst May. Entre 1925 e 1933, May conduziu o projecto público Das Neue Frankfurt (A Nova Frankfurt), que resultou na construção de mais de 12.000 apartamentos, pensados para fazer face às necessidades de uma sociedade em transformação. Com o objectivo de se destacar como exemplo de urbanismo racional e progressista, a cidade foi também pioneira na adopção em larga escala de uma cozinha revolucionária, trazendo funcionalidade e modernidade à vida quotidiana.

Uma das maiores preocupações deste projecto residia na cozinha, espaço até então frequentemente desvalorizado, multifuncional e pouco eficiente. Nos novos apartamentos, a cozinha teria uma área reduzida. Foi primordial repensar o seu desenho e funcionamento. Era necessário criar uma cozinha que, mesmo pequena, facilitasse de forma prática e organizada as tarefas domésticas do dia-a-dia.

Surge então uma das figuras mais marcantes da história do design doméstico: a arquitecta austríaca Margarete Schütte-Lihotzky, responsável pela concepção da Cozinha de Frankfurt.

Quem foi Margarete Schütte-Lihotzky?

Margarete Schütte-Lihotzky (1897-2000) foi uma arquitecta austríaca e a primeira mulher a formar-se em arquitectura no seu país.

Curiosamente, confidenciou numa entrevista dada à rádio, aos 100 anos, que:

Na nossa casa em Viena era a minha mãe que cozinhava e em Frankfurt eu comia sempre no [restaurante] Wirthaus. Criei a cozinha como uma arquitecta, não como uma dona de casa.”

Trabalhou em colaboração com Frederick Winslow Taylor, conhecido como o pai do Taylorismo, uma teoria que procura a optimização de processos de trabalho, reduzindo movimentos desnecessários para melhorar a produtividade. Margarete aplicou esta lógica ao espaço doméstico. A sua proposta revolucionou a forma de pensar o espaço doméstico, transformando a cozinha num ambiente funcional, racionalizado e optimizado, adaptado às necessidades reais das famílias da época. Mediu o tempo de cada movimento com vista a manter todos os utensílios e ingredientes organizados e acessíveis e assim eliminar passos desnecessários no espaço da cozinha. Por exemplo, o triângulo de trabalho, entre lava-loiça, fogão e área de armazenamento, foi uma inovação que surgiu dessa análise.

Sabendo que Margarete não cozinhava surge a questão: onde se inspirou ela para conseguir esta optimização? Observou e analisou cozinhas dos vagões-restaurante dos comboios e cozinhas dos barcos, com características idênticas: pequenas, eficientes, sem desperdício de espaço, onde tudo está ao alcance da mão.

Como era a Cozinha de Frankfurt?

A Cozinha de Frankfurt foi concebida para ser produzida industrialmente em larga escala, através de módulos padronizados que incluíam armários do chão ao tecto, uma bancada de trabalho, um lava-loiça com escorredor integrado, gavetas para o lixo e recipientes de alumínio destinados ao armazenamento dos ingredientes mais utilizados.

O seu layout era rigorosamente funcional: a disposição paralela do mobiliário criava um corredor estreito que reduzia deslocações. A bancada possuía um banco rotativo, permitindo realizar sentada tarefas prolongadas, e elementos como a tábua de engomar dobrável na parede e a gaveta de lixo embutida antecipavam soluções modernas de optimização de espaço.

Com cerca de 6,4 m² (tipicamente cerca de 1.9 m × 3.4 m), tratava-se de uma cozinha pequena para os padrões da época. Para tornar o espaço verdadeiramente eficiente, Margarete organizou um triângulo de trabalho entre o lava-loiça, o fogão e a área de arrumação, reduzindo ao mínimo os movimentos necessários. Foram introduzidos pela primeira vez armários planeados, em madeira e metal, aproveitando ao máximo o espaço vertical. Cada compartimento tinha uma função específica, promovendo uma arrumação clara e facilitando o trabalho doméstico.

Os materiais foram escolhidos por razões práticas e higiénicas: azulejos junto ao fogão e ao lava-loiça permitiam uma limpeza fácil, o piso em linóleo era resistente e simples de manter, e as bancadas em madeira de faia suportavam bem o uso intensivo, resistente aos ácidos dos alimentos e lâminas pontiagudas das facas. Os recipientes de carvalho ajudavam a evitar o aparecimento de insectos. As portas eram pintadas em tom azul-esverdeado uma cor evitada por moscas e mosquitos. As caixas de alumínio rotuladas garantiam uma arrumação visualmente organizada e eficiente.

A cozinha contava ainda com água corrente, algo que não era garantido em todas as habitações da época, e com um fogão a gás compacto, adequado ao espaço reduzido. Foi dada especial atenção à ergonomia posicionando os armários e prateleiras à altura dos olhos e das mãos, evitando esforços desnecessários. Por fim, uma mesa dobrável permitia efectuar pequenas refeições no próprio espaço, tornando a cozinha não apenas funcional, mas também prática no dia-a-dia.

O Lado Menos Funcional

Apesar de ter sido um marco na história do design doméstico e a base das cozinhas modernas, a Cozinha de Frankfurt apresentava limitações que se tornaram evidentes quando passou a ser utilizada no quotidiano. Como acontece com muitos projectos-piloto, nem sempre o que consta no projecto se revela adequado à vida real das famílias.

Uma das principais críticas dizia respeito ao espaço muito reduzido. A disposição racional e rigorosa tinha como objectivo agilizar o trabalho, mas, na prática, tornava quase impossível que duas pessoas trabalhassem em simultâneo. Isto dificultava a partilha das tarefas domésticas e mantinha a responsabilidade do trabalho doméstico concentrado numa única pessoa, geralmente a mulher.

Apresentando um layout rígido e pouco flexível levou a que as famílias sentissem a necessidade de adaptar a cozinha às suas rotinas, muitas vezes contrariando a organização original pensada pela arquitecta. Também foram identificados compartimentos e elementos acessíveis a crianças, levantando preocupações quanto à segurança.

Pensada como um “laboratório doméstico”, a Cozinha de Frankfurt tornou-se um espaço exclusivamente dedicado ao trabalho, sem lugar para o convívio. A cozinha ficou isolada das restantes divisões da casa isolando também a mulher transformando-a na trabalhadora doméstica solitária. Se antes a cozinha era um espaço central da vida familiar, agora era um ambiente funcional, mas solitário, contribuindo para a sensação de isolamento durante as tarefas diárias.

O Legado da Cozinha de Frankfurt nas Cozinhas Modernas

A experiência da Cozinha de Frankfurt mostra-nos como o espaço doméstico é sempre um reflexo das necessidades e ritmos da vida quotidiana. Na década de 1920, procurou-se sobretudo eficiência. Hoje, apesar de a cozinha voltar a assumir um papel social e de encontro, esse princípio continua a ser útil.

Ao planear uma cozinha contemporânea, é importante pensar na distribuição das zonas de trabalho – preparar, cozinhar, lavar e armazenar – para que tudo esteja ao alcance de forma lógica, conectada ao “triângulo da cozinha”, que aproxima fogão, lava-loiça e frigorífico, para facilitar o movimento. Da mesma forma, a escolha de materiais fáceis de limpar e móveis que permitam uma arrumação clara ajuda a manter o espaço funcional na rotina diária.

O seu maior contributo foi ensinar que a cozinha não é apenas um espaço utilitário mas também é um ambiente pensado, onde organização, ergonomia e vivência se articulam.

Uma Cozinha Visionária que Mudou a História

A Cozinha de Frankfurt representou um salto revolucionário no design doméstico. Transformou a cozinha num espaço eficiente, higiénico e funcional, estabelecendo as bases das cozinhas modernas que hoje conhecemos.

Quando olhar ou planear a sua cozinha, lembre-se: funcionalidade e fluidez começam no layout, mas culminam em espaços onde seres humanos vivem, cozinham e convivem.

A próxima vez que abrir uma gaveta bem organizada, usar um móvel embutido ou aproveitar um percurso fluído entre lavar, preparar e cozinhar, lembre-se:

Está a viver a herança da Cozinha de Frankfurt.

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